Vícios e Virtudes: uma introdução
Tassos Lycurgo
http://www.lycurgo.org/Falar sobre os vícios e as virtudes não é tarefa simples. Posso mesmo esticar, dobrar, espremer o pensamento e, mesmo assim, a dificuldade ainda me remanesce, razão por que, em certo sentido, tenho mesmo a vontade de declarar a desistência quando os assuntos são assim tão extremados. Algum consolo existe, contudo, quando verifico que não estou solitário nesta tarefa, pois muitos – para dizer a triste verdade – também confessam a mesma apertura e, quando tentam superá-la, chegam às mais diversas conclusões.
Para alguns, como Sêneca e Horácio, por exemplo, virtudes somavam palavras bonitas, mas desprovidas de significado. “Triste virtude, és apenas uma palavra” seria o que, de acordo com Floro (em sua
Epítome), por último saiu da boca de Brutus, ao morrer. O senso comum, petrificado na opinião do povo em dado momento, parece ser mais benevolente com o conceito de virtude, de sorte que muitos a tomam como condição de uma espécie de nobreza da alma. Veja-se que, a esse respeito, há um antigo ditado em português que afirma que “é melhor ser bom do que de boa raça”, o qual, adaptando-se às eventuais peculiaridades histórico-culturais das demais línguas modernas, encontra nelas algumas sinonímias, tais como a alemã “
Tugend ist der beste Adel”, a espanhola “
Noble se puede llamar el que por naturaleza es inclinado a virtue” ou a inglesa “
Nobility is the one only virtue”, entre outras.
Dos vícios, muitos os consideram condições essenciais à constituição humana, de maneira que eles quase que formam o homem como as letras formam as palavras. Mas, em algum sentido, entender que somos viciosos pode paradoxalmente se apresentar como postura virtuosa, pois, como Petrônio insiste em nos lembrar, “
homines sumus non dei” – “somos homens, não Deuses” – e, sendo assim, imaginar-nos sem os vícios seria senão presunçoso, por demasiado infantil. Realmente, somos um conjunto de falhas, de defeitos, de vícios, que, contrapostos às nossas virtudes – ou dito, talvez, de melhor maneira, em conjunto com elas –, formam esta mistura, por vezes impressionante, que costumamos chamar de espécime humano, de sorte que enquanto estes houver, vícios haverá, como, por sinal, bem o disse Tácito, em sua
Historiae. Entender este conjunto é desafio árduo, mormente quando envolve conteúdos eticamente apreciáveis.
Embora o termo “virtude”, que encontra respaldo etimológico no latino “
virtus” e no grego “
arete”, não tenha nascido com forte conteúdo ético, logo o adquiriu e, hoje, quase se confunde com o adjetivo “bom”, assim como vício se confunde com “mau”. O conteúdo ético, embora quase sempre presente, sofre variações a depender do pensador. Para Agostinho, a bondade da virtude estava no amor; Hobbes o via no desejo de paz; Malebranche o encontrava no amor pela ordem; Montesquieu, de forma relativamente semelhante, no amor pela lei; Kant, na postura diante dos deveres firmemente estabelecidos. Enfim, cada cabeça, um mundo, um conceito de virtude e, conseqüentemente, de vício. A análise, todavia, não precisa ficar tão aberta, se consideramos que, das várias questões que o tema envolve, tais como as que inquirem sobre a origem deles, a maneira como se desenvolvem e a forma como afetam os seres humanos, há uma em particular que desperta grande interesse para pensamento artístico: a que pergunta como os vícios e as virtudes podem ser apropriadamente representados, personificados, pelas artes visuais. É, em outras palavras, a transmutação na questão analisada da predominância ética para a estética, de maior interesse das artes.
Giotto di Bondone (1267-1337), considerados um dos primeiros pilares da renascença italiana, enfrentou como ninguém o problema de representar visualmente os vícios e as virtudes quando, em 1305 e 1306, aproximadamente, pintou trinta e oito afrescos na Capela Arena, em Pádua. Saiba-se que afresco é o nome da obra que se obtém por meio de uma técnica de pintura que se dá na própria parede quando o revestimento desta ainda está úmido, de forma que a tinta possa naquele momento ali penetrar e, conseqüentemente, perpetuar-se por vários anos.
As principais séries de afrescos lá presentes são as que descrevem a vida de Cristo, a vida de Maria e o Juízo Final. Há, contudo, um tema que é pintado na parte mais baixa das paredes que, a meu sentir, é o mais interessante de todos, que é, exatamente, a exposição de figuras representando as sete virtudes divinas e os sete vícios profanos. Glenn Erickson, em seu “
Giotto’s Virtues”, que traduzi para publicação em português sob o título “As virtudes de Giotto”, tratou do assunto. Em outras crônicas, tratarei especificamente da personificação de cada virtude com o respectivo vício, demonstrando como a prudência e a tolice; a firmeza e a inconstância; a temperança e a ira; a justiça e a injustiça; a fé e a idolatria (ou descrença); a misericórdia e a inveja; e, por fim, a esperança e a desesperança, puderam ser visualmente representados por figuras humanas em situações específicas. Espero que estes textos vindouros sejam em algum sentido virtuosos, pois vícios certamente os terão. Veremos.