17 janeiro 2012

Livros

Caros,


Muitos dos textos escritos aqui foram colocados em dois livros:




  1. LYCURGO, Tassos. (2010). Imagem in Ação: Contos da Cidade, do Sertão e do Cais. Natal (RN): EDUFRN, 2010, 162 p. ISBN: 978-85-7273-597-1. [Look Inside | Buy].
  2. LYCURGO, Tassos. (2009). Variações do Indizível: Ensaios de Risco. Natal (RN): EDUFRN, 2009, 162 p. ISBN: 978-85-7273-596-4. [Look Inside | Buy].


    Para lê-lo gratuitamente, é só clicar em "Look inside".

    Deus abençoe.

    Lycurgo

13 junho 2009

...

12 fevereiro 2008

Vícios e Virtudes: uma introdução

Vícios e Virtudes: uma introdução

Tassos Lycurgo
http://www.lycurgo.org/

Falar sobre os vícios e as virtudes não é tarefa simples. Posso mesmo esticar, dobrar, espremer o pensamento e, mesmo assim, a dificuldade ainda me remanesce, razão por que, em certo sentido, tenho mesmo a vontade de declarar a desistência quando os assuntos são assim tão extremados. Algum consolo existe, contudo, quando verifico que não estou solitário nesta tarefa, pois muitos – para dizer a triste verdade – também confessam a mesma apertura e, quando tentam superá-la, chegam às mais diversas conclusões.

Para alguns, como Sêneca e Horácio, por exemplo, virtudes somavam palavras bonitas, mas desprovidas de significado. “Triste virtude, és apenas uma palavra” seria o que, de acordo com Floro (em sua Epítome), por último saiu da boca de Brutus, ao morrer. O senso comum, petrificado na opinião do povo em dado momento, parece ser mais benevolente com o conceito de virtude, de sorte que muitos a tomam como condição de uma espécie de nobreza da alma. Veja-se que, a esse respeito, há um antigo ditado em português que afirma que “é melhor ser bom do que de boa raça”, o qual, adaptando-se às eventuais peculiaridades histórico-culturais das demais línguas modernas, encontra nelas algumas sinonímias, tais como a alemã “Tugend ist der beste Adel”, a espanhola “Noble se puede llamar el que por naturaleza es inclinado a virtue” ou a inglesa “Nobility is the one only virtue”, entre outras.

Dos vícios, muitos os consideram condições essenciais à constituição humana, de maneira que eles quase que formam o homem como as letras formam as palavras. Mas, em algum sentido, entender que somos viciosos pode paradoxalmente se apresentar como postura virtuosa, pois, como Petrônio insiste em nos lembrar, “homines sumus non dei” – “somos homens, não Deuses” – e, sendo assim, imaginar-nos sem os vícios seria senão presunçoso, por demasiado infantil. Realmente, somos um conjunto de falhas, de defeitos, de vícios, que, contrapostos às nossas virtudes – ou dito, talvez, de melhor maneira, em conjunto com elas –, formam esta mistura, por vezes impressionante, que costumamos chamar de espécime humano, de sorte que enquanto estes houver, vícios haverá, como, por sinal, bem o disse Tácito, em sua Historiae. Entender este conjunto é desafio árduo, mormente quando envolve conteúdos eticamente apreciáveis.

Embora o termo “virtude”, que encontra respaldo etimológico no latino “virtus” e no grego “arete”, não tenha nascido com forte conteúdo ético, logo o adquiriu e, hoje, quase se confunde com o adjetivo “bom”, assim como vício se confunde com “mau”. O conteúdo ético, embora quase sempre presente, sofre variações a depender do pensador. Para Agostinho, a bondade da virtude estava no amor; Hobbes o via no desejo de paz; Malebranche o encontrava no amor pela ordem; Montesquieu, de forma relativamente semelhante, no amor pela lei; Kant, na postura diante dos deveres firmemente estabelecidos. Enfim, cada cabeça, um mundo, um conceito de virtude e, conseqüentemente, de vício. A análise, todavia, não precisa ficar tão aberta, se consideramos que, das várias questões que o tema envolve, tais como as que inquirem sobre a origem deles, a maneira como se desenvolvem e a forma como afetam os seres humanos, há uma em particular que desperta grande interesse para pensamento artístico: a que pergunta como os vícios e as virtudes podem ser apropriadamente representados, personificados, pelas artes visuais. É, em outras palavras, a transmutação na questão analisada da predominância ética para a estética, de maior interesse das artes.

Giotto di Bondone (1267-1337), considerados um dos primeiros pilares da renascença italiana, enfrentou como ninguém o problema de representar visualmente os vícios e as virtudes quando, em 1305 e 1306, aproximadamente, pintou trinta e oito afrescos na Capela Arena, em Pádua. Saiba-se que afresco é o nome da obra que se obtém por meio de uma técnica de pintura que se dá na própria parede quando o revestimento desta ainda está úmido, de forma que a tinta possa naquele momento ali penetrar e, conseqüentemente, perpetuar-se por vários anos.

As principais séries de afrescos lá presentes são as que descrevem a vida de Cristo, a vida de Maria e o Juízo Final. Há, contudo, um tema que é pintado na parte mais baixa das paredes que, a meu sentir, é o mais interessante de todos, que é, exatamente, a exposição de figuras representando as sete virtudes divinas e os sete vícios profanos. Glenn Erickson, em seu “Giotto’s Virtues”, que traduzi para publicação em português sob o título “As virtudes de Giotto”, tratou do assunto. Em outras crônicas, tratarei especificamente da personificação de cada virtude com o respectivo vício, demonstrando como a prudência e a tolice; a firmeza e a inconstância; a temperança e a ira; a justiça e a injustiça; a fé e a idolatria (ou descrença); a misericórdia e a inveja; e, por fim, a esperança e a desesperança, puderam ser visualmente representados por figuras humanas em situações específicas. Espero que estes textos vindouros sejam em algum sentido virtuosos, pois vícios certamente os terão. Veremos.

06 fevereiro 2008

Política e Cultura

Política e Cultura

por Tassos Lycurgo - www.lycurgo.org

Os campos da cultura tornaram-se enfadonhos. Nos encontros de temas afeitos a essa temática seria bom se víssemos a todo tempo os posicionamentos originais, únicos, desafiadores; ou seja, aqueles que subvertem o pensamento e fazem repensar conceitos e perspectivas. Em regra, não é o que ocorre. Aliás, para sermos honestos, podemos dizer que muitos dos encontros culturais são, quase sempre, repetições sem graça, sem originalidade e tão insossos que, comparada a eles, água mineral mataria de hipertensão. O coquetel de abertura desses eventos ou a cerimônia de entrega de prêmios, por exemplo, são quase sempre sofríveis: bajulações sem-fim, protocolos, idem.

É bem verdade que a vantagem do protocolo, como dizia o Azambuja, é que em sua ausência, duas coisas aconteceriam: ninguém administraria as vaidades e ninguém sentaria. Como em pé somente a turma que não tem outras opções consegue ficar durante todo o tempo, podemos conciliar as duas noções: o protocolo é aterrorizante, embora essencial para que sentemos; mas quanto à bajulação, devo dizer, não há saídas: é mesmo o fim do mundo, de forma que, nos eventos culturais, a situação é tão crítica que há casos em que muitos sentem – embora não o admitam publicamente – que o melhor momento é o do intervalo.

Para piorar a situação, a política cultural, por vezes, é absolutamente desvirtuada. Alguns políticos se aproveitam da cultura para atacar adversários. Ora, isso faz com que grande parte do que se produz hoje nesses eventos não passe, na realidade, de uma manifestação primitiva e traiçoeira de um confronto eleitoreiro de egos em um ambiente no qual os digladiadores são significantemente piores do que os guerreiros de antigamente, pois a frouxidão e semblantes pálidos que aqueles apresentam não os permitem enveredar logo para o duelo, para confronto direto, no qual pesam muitos quês de selvageria e incivilidade — é verdade —, mas, pelo menos, os oponentes saberiam para que lá se encontravam e as armas seriam conhecidas. A batalha aberta – mesmo a batalha intelectual aberta – é sempre honesta, seja porque, exceto a da honestidade, não há regras a descumprir, seja porque, quando as há, não remanesce tempo para descumpri-las; o subterfúgio é que é a arma detestável e, infelizmente, é a mais usada.

A aparência de intelectualidade que se tentam a todo custo imprimir alguns personagens dos eventos culturais, nesses termos, é em grande parte uma farsa, pois camufla desejos pequenos e vaidades idem, quando deveria enaltecer valores incompatíveis com tudo o que é mesquinho e pequeno. Ora, o uso da cultura – universal, mesmo quando regional – com intuitos eleitoreiros ou pessoais faz aparecer aos montes homens que, em vez de enfrentarem idéias e pessoas de forma honesta e limpa, vão pelos lados, como as baratas. Mentem e fazem do seu agir o instrumento da dissimulação. Confabulam por trás, armam estratégias eleitoreiras às escuras, reúnem-se entre si, tudo para impor ao adversário ausente alguma dose de veneno, uma desvantagem, um golpe baixo, como se o pensamento cultural devesse se prestar a isso.

Sabemos que as baratas, assim como esses homens, não atacam diretamente: agem pelos cantos, pelas costas, contaminando tudo o que podem. O ardil, no lugar da honestidade, é a arma predileta delas, quando não a única. Sorrateiramente, aproximam-se e esperam o momento propício para agir e, quando nunca se espera, quando não se pode guerrear, quando se está com a luz apagada, fazem o seu trabalho sujo, para fugir à inicial batida ou ao sinal da primeira lâmpada a ser acesa. Os políticos desse tipo são as baratas e, a despeito disso, conseguem os almejados votos. É que muito deles se lançam por certos caminhos com o intuito de, conquistando a superficialidade, mostrar uma falsa profundidade para alguns eleitores, seja porque os que eles arregimentam para vê-los são míopes, seja porque as idéias que professam são turvas, impenetráveis e, por isso, sempre oferecem aqui ou acolá uns quês de esoterismo, os quais, no entendimento de muitos, toma a roupagem esquisita da sabedoria.

Guimarães Rosa já fizera em algum lugar a comparação entre homens e rios. No caso desses políticos, eles seriam rios de águas tão embaciadas que pouco se veria a dez centímetros de profundidade, inda que nunca se soubesse se há efetivamente algum hiato entre a superfície e o fundo do riacho. Os políticos que são riachos rasos, portanto, são mais perigosos do que os apenas de águas turvas, pois impõem a todos os que mergulham em suas propostas o iminente perigo de, no pulo, quebrar o próprio pescoço; e, por fim, o pior é que, se olharmos bem, veremos muitos eleitores de pescoço quebrado.

31 dezembro 2007

A Esquizofrenia do Artista

A Esquizofrenia do Artista

Por Tassos Lycurgo
http://www.lycurgo.org/

Às vezes, em noites bem escuras, tais quais as que se dão — e mesmo se doam — quando estamos fora da cidade, olhamos para o céu com o único intuito de visualizar outras galáxias e ter novos pensamentos. Nesses instantes, nada senão o sentimento da humildade é que, sem delongas, nos povoa todo o recheio do crânio e, de logo, impõe-se o mais temível dos corolários: este planeta Terra é pequeníssimo e, em certas escalas de proporcionalidade, fica assim minúsculo, como o ponto final que encerra este parágrafo.

Na juventude, sempre pensei nestes termos: somos quase nada diante da grandiosidade do universo e, assim, esta idéia de nossa insignificância cosmológica realmente me era algo tão impressionante que se me apresentava com aspectos de terror. Ora, as estrelas nunca me emitiram sinfonias cintilantes — como parecem fazer quanto aos poetas —, mas um burburinho horríssono que não me permitia esquecer que nós, seres humanos, não passamos de argueiros, grânulos ou, se preferem, poeiras diante do Cosmos.

Depois da juventude, paradoxalmente, embora os anos, com algum esforço, me tenham imprimido certos quês, mas não tantos, de maturidade, olhar para as galáxias já não me provocava a emoção de outrora. Envelhecia e, de certa forma, assim como quem lê um poema e o descreve como tinta sobre papel, as luzes do Cosmos passaram a ser para mim semelhantes àquelas do escritório ou da sala de jantar: simples e tristes agrupamentos de fótons, de cujas funções destacava-se a de manter viva a insistência de afastar a noite sem os inconvenientes do dia.

Tristes perspectivas as que obstinadamente me martelavam o princípio da identidade, o mais sensabor de todos os três da lógica ortodoxa. Um fóton é um fóton; uma estrela é uma estrela; um ser humano é um ser humano, etc. Faltava-me a perturbação do pensamento, a insurreição dos conceitos, a liberdade de saber que, no jogo das coisas importantes, o todo pode mesmo ser menor do que a parte, dependendo das semânticas subversivas que imprimimos ao mundo, ao nosso mundo. Aqui, no aspecto subversivo, jaz a arte.

A arte é, em certa medida, a expressão da subversão, pois tenta, mesmo que malsucedidamente, fazer da simples pincelada a afônica voz que, em silencioso desespero, procura a todo custo bramir o indizível. O que importa é a tentativa. O que importa é o espanto. Diante do mundo inteiro e de cada pequena coisa, há escondidos um mistério e uma incógnita para serem apreciados, pintados, representados, mesmo que nunca se consiga expressar o espanto que verdadeiramente se sentiu diante do mundo contemplado. O mister do artista — o que genuinamente vive a arte — é, portanto, uma atividade solitária que inutilmente quer ser coletiva, pois morre no fracasso de tentar transpor a barreira da impossibilidade, que é dizer o que a linguagem tristemente não consegue dar conta.

O “nunca mais” do corvo de Poe ingressa em âmbito bem mais agudo e estabelece a sina do artista: “nunca jamais”, pois o que verdadeiramente importa não é apreendido pela linguagem, de forma que ao artista resta dedicar-se por toda a vida a uma tarefa irrealizável, sabendo que o prazer não poderá estar na conquista, mas apenas no processo da tentativa. Quando muito, deve o artista se auto-esquizofrenizar artisticamente, para que, trazendo tudo o que existe para dentro de si, possa tornar-se, mesmo que individualmente, o mundo inteiro. Assim, ao tentar comunicar o mundo, o artista comunicará a sua alma, dando a impressão — simples impressão — de que conseguiu subverter a impossibilidade de comunicar o incomunicável.

Neste ponto — no da esquizofrenia artística —, penso que Deus não mais tirará do artista a capacidade de se maravilhar com a vida e, portanto, de se tornar quem realmente é: um obstinado em buscar o inalcançável, tendo prazer nas procuras, nas tentativas necessariamente fracassadas, em que as noites escuras, com suas galáxias e mistérios, dirão toda a verdade para o artista, que nunca conseguirá dizer o que ouviu. Os artistas são, portanto, os seres que foram por toda vida condenados ao silêncio de sua arte, mesmo que, aqui, se trate do silêncio que grita.

05 outubro 2006

O Amor

O Amor

Por Tassos Lycurgo
www.lycurgo.org


Cicinho e Cicinha nasceram na serra. Dia, noite e mais outros tantos. No fim de tudo, Seu Ciço, setenta de seis; Dona Ciça, sessenta e oito; ambos, somados, mais de quatro mil. Ei-la, inconfundível, a aritmética da vida: é o tempo que passa menos aqui do que acolá, na esquina do outro lado da rua, onde está toda a matemática que importa. Dos dezenove filhos de Dona Ciça, sobraram sete. Dos outros doze, há tanto de se contarem mortes de doença quanto de ruindade. Dos que ficaram, cinco são bons; dois, cabras-de-peia mais brabos que onça e mulher sem muito estilo juntas: um exagero sem exageração visto que é verdade.

Seu Ciço é mais que muito feliz, felicíssimo. Dona Ciça, também, talvez. Ela não mostra muita emoção, é taciturna demasiadamente Cariri. Seu Ciço faz muito pois é agricultor. Planta. Planta. Planta. Colhe: uma vez para três, mas não reclama não. Planta na serra mesmo, tudo inclinado: o terreno, a plantação, a chuva, o chapéu de palha, a enxada e o pensamento. Pensamentos inclinados poderiam tornar o mundo todo de ladeira: nada reto, que dá sono demais e não serve muito.

Dona Ciça fica em casa e trabalha nas coisas pequenas mas mais que grandes: costura, cozinha, cuida das crianças, ora aos montes, que ficam e que vão. Cria as que consegue com seu código particular de entender a vida: café, farinha, feijão, cuscuz, batata, algum frango e o resto é apenas moralidade inata. Certa vez mandou o menor, de quatro anos há pouco cumpridos, deixar a marmita na roça para o pai comer. Foi, subiu a serra, mas fez tarefa pela metade, pois voltou e disse para mãe que tinha visto cobra jararaca no caminho. Não matou?! Perguntou-lhe Dona Ciça, quem, em face da negativa, mandou que voltasse e matasse pois quem já se viu deixar marmita e, na volta, não matar bicho peçonhento. Criança de quatro anos, dentro dos cinco, já devia saber disso.

Seu Ciço e Dona Ciça envelheciam mais e mais. Nunca tiveram aqueles questionamentos do subsolo, chamados de metafísicos pelos estranhos. Nunca, nem uma vez quando conversavam. Chegaram, é verdade, a pensar de onde vem o vento, mas logo sentiram que o movimento é a essência de tudo que está na serra. Na ladeira tudo corre para baixo. Era o Heráclito de hoje e, com base no espaço ladeirento explicava do sol ao sono e mais todas as palavras da letra esse e também das outras do alfabeto, exceto as da letra agá, que nem aparece no nome.

Certo momento, chegou o tempo de morrer dos dois. Seu Ciço foi antes. Morreu e pronto. Estava salvo há muito. Dona Ciça, logo no outro dia, teve raiva dele: deixou-a lá, depois de tanto sofrimento, tanta alegria e tanto cuscuz que fez quando tinha milho, que, graças a Deus, era quase sempre. Teve ódio, ira, rancor, raiva e tudo o mais de ruim que um coração frágil da serra suportaria. Maldisse Seu Ciço umas quinhentas mil vezes ou mais, se considerarmos o reflexo da velha que ora se fazia no açudinho que lutava contra filete de riacho que descia de uma nascente do alto da serra.

Uma semana depois, não tinha mais raiva. Dona Ciça tinha uma sensação estranha de pensar o que nunca pensara: a vida. Eram, nascendo na decrepitude, os pensamentos do subsolo. Quase oitenta anos mais que noventa e tudo assim tão rápido. Um dia, um ano, uma década, uma vida todinha, sem faltar quase nenhum pedaço. E aquelas reclamações e todos aqueles problemas impossíveis do tamanho da serra toda hoje cabiam juntos em qualquer um desses buracos da parede.

Dona Ciça entendeu a vida para começar a morrer aos poucos. Via a ladeira da serra e, com base na inclinação, não conseguia explicar o que tinha acontecido com ela: a vida vivida todinha sempre sem explicação. Sempre o fundamento da realidade ladeirenta lhe fora suficiente para tudo o que existia — menos para a existência de tudo — e, agora, além de Seu Ciço ter abandonado a vida e a serra, a própria ladeira da serra abandonava Dona Ciça e não mais explicava o mundo.

Respirou, respirou mais uma vez e a última: então também morreu. Nunca, até agora, alguém havia contado a história deles, que é uma história, apenas, sem outras coroas senão a maior de todas: a de conseguir mostrar o que a linguagem, com suas palavras desesperadas, não poderia dizer, pois é inexplicável até pelas ladeiras de todas as serras, mas que está presente naqueles cujas vidas são como os poemas que apenas por trás das tintas das palavras e das celuloses dos papéis denunciam o verdadeiro amor. De Seu Ciço e Dona Ciça, restou a comprovação de que o amor, assim como tudo o mais que é pensamento do subsolo, não é dizível, mas apenas pode ser mostrado para os que já o sentem e silenciam no sofrimento de viver com a maior sina da nossa linguagem: a de apenas poder dizer o que é verdadeiramente desimportante e medíocre e que, portanto, muita vez nem precisaria ser dito.

26 junho 2006

A Saudade

A Saudade

Por Tassos Lycurgo
www.lycurgo.org

Confesso que, a despeito das minhas inúmeras tentativas, nunca aprendi muito bem para que servem as palavras, mas o contrário disso, ou seja, entender para que desservem, sempre foi a minha especialidade. Entre tantos vocábulos que, a meu sentir, não apresentam qualquer serventia, encontra-se a palavra “fim”. Ora, “fim”, com suas únicas três letrinhas, não é capaz de aniquilar completamente com nada, de extinguir por definitivo nenhuma situação, mantendo ainda na existência o que, nos termos que a palavrinha quer dar a entender, deveria de muito já ter acabado.

Como daria um trabalho enorme defender a tese de que deveríamos oferecer mais noventa e sete letras à palavra “fim”, já que absurdamente só tem três, uma alternativa seria dar mais vigor às que lá já se encontram. Uma idéia nesse sentido seria a de se determinar que elas trouxessem em si, respectivamente, um “f” de fogo, um “i” de incêndio e o “m” de maçarico. Teríamos, assim, uma palavra “fim” incendiária, que aniquilaria e exterminaria tudo que encontrasse... Bem, quase tudo, pois, mesmo depois que ela, embora pequenina, queimasse tudo até o ponto de se pensar que nada mais ali restaria, lá ainda se poderia ver aquele conhecido montinho, o de cinzas.

É fato que depois do incêndio, por pior e mais devastador que seja, ainda estarão lá as cinzas, que, no estranho mundo dos desserviços das palavras, deveriam, isso sim, ser chamadas de “saudade”. É isso: a saudade é um monte de cinzas, que ainda resta depois da ação do fogo, do incêndio e do maçarico. Se pelo menos nascêssemos chamando as cinzas de saudades, saberíamos desde cedo de alguma coisa.

Saber de alguma coisa, nada obstante, é saber de quase nada, principalmente quando o assunto é a saudade. Realmente, a saudade é o mais peculiar dos sentimentos. Note que a angústia, a dor moral e o desespero, que não são saudade, doem como algo que está nos cortando de dentro para fora, nos ferindo, nos mutilando. A dor física e a inveja, por exemplo, doem de fora para dentro. Tanto esse tipo de sentimentos quanto aquele, às suas maneiras, nos ferem, mas a saudade, diferentemente de tudo isso, não golpeia, mas é o próprio corpo ferido e golpeado.

A saudade, tal como um corpo escoriado, esfolado, dói, é fato, mas dói porque nos sentimos incompletos, porque nos sentimos menos do que somos e, diante disso, a sensação é a de que não podemos fazer nada, pois fazer algo contra a saudade seria fazer algo contra nós mesmos, já que ela, de forma diversa do que acontece com os outros sentimentos, não está presente em nós, mas é a nossa própria personificação.

Em outras palavras, pode-se dizer que a saudade é um sentimento de incompletude potencializada pela impotência e, por isso, não é a dor da mutilação, como muitos assim o pensam, mas a dor da constatação de que se está mutilado. De fato, conforme já disse, é o único sentimento que se confunde com aquele que o sente e é exatamente por isso que não há saudade como algo isolado, mas apenas no sujeito que sofre, ou seja, nas lágrimas que ele não chorou, no grito que ele não gritou e no parágrafo que ele nunca escreveu.