05 outubro 2006

O Amor

O Amor

Por Tassos Lycurgo
www.lycurgo.org


Cicinho e Cicinha nasceram na serra. Dia, noite e mais outros tantos. No fim de tudo, Seu Ciço, setenta de seis; Dona Ciça, sessenta e oito; ambos, somados, mais de quatro mil. Ei-la, inconfundível, a aritmética da vida: é o tempo que passa menos aqui do que acolá, na esquina do outro lado da rua, onde está toda a matemática que importa. Dos dezenove filhos de Dona Ciça, sobraram sete. Dos outros doze, há tanto de se contarem mortes de doença quanto de ruindade. Dos que ficaram, cinco são bons; dois, cabras-de-peia mais brabos que onça e mulher sem muito estilo juntas: um exagero sem exageração visto que é verdade.

Seu Ciço é mais que muito feliz, felicíssimo. Dona Ciça, também, talvez. Ela não mostra muita emoção, é taciturna demasiadamente Cariri. Seu Ciço faz muito pois é agricultor. Planta. Planta. Planta. Colhe: uma vez para três, mas não reclama não. Planta na serra mesmo, tudo inclinado: o terreno, a plantação, a chuva, o chapéu de palha, a enxada e o pensamento. Pensamentos inclinados poderiam tornar o mundo todo de ladeira: nada reto, que dá sono demais e não serve muito.

Dona Ciça fica em casa e trabalha nas coisas pequenas mas mais que grandes: costura, cozinha, cuida das crianças, ora aos montes, que ficam e que vão. Cria as que consegue com seu código particular de entender a vida: café, farinha, feijão, cuscuz, batata, algum frango e o resto é apenas moralidade inata. Certa vez mandou o menor, de quatro anos há pouco cumpridos, deixar a marmita na roça para o pai comer. Foi, subiu a serra, mas fez tarefa pela metade, pois voltou e disse para mãe que tinha visto cobra jararaca no caminho. Não matou?! Perguntou-lhe Dona Ciça, quem, em face da negativa, mandou que voltasse e matasse pois quem já se viu deixar marmita e, na volta, não matar bicho peçonhento. Criança de quatro anos, dentro dos cinco, já devia saber disso.

Seu Ciço e Dona Ciça envelheciam mais e mais. Nunca tiveram aqueles questionamentos do subsolo, chamados de metafísicos pelos estranhos. Nunca, nem uma vez quando conversavam. Chegaram, é verdade, a pensar de onde vem o vento, mas logo sentiram que o movimento é a essência de tudo que está na serra. Na ladeira tudo corre para baixo. Era o Heráclito de hoje e, com base no espaço ladeirento explicava do sol ao sono e mais todas as palavras da letra esse e também das outras do alfabeto, exceto as da letra agá, que nem aparece no nome.

Certo momento, chegou o tempo de morrer dos dois. Seu Ciço foi antes. Morreu e pronto. Estava salvo há muito. Dona Ciça, logo no outro dia, teve raiva dele: deixou-a lá, depois de tanto sofrimento, tanta alegria e tanto cuscuz que fez quando tinha milho, que, graças a Deus, era quase sempre. Teve ódio, ira, rancor, raiva e tudo o mais de ruim que um coração frágil da serra suportaria. Maldisse Seu Ciço umas quinhentas mil vezes ou mais, se considerarmos o reflexo da velha que ora se fazia no açudinho que lutava contra filete de riacho que descia de uma nascente do alto da serra.

Uma semana depois, não tinha mais raiva. Dona Ciça tinha uma sensação estranha de pensar o que nunca pensara: a vida. Eram, nascendo na decrepitude, os pensamentos do subsolo. Quase oitenta anos mais que noventa e tudo assim tão rápido. Um dia, um ano, uma década, uma vida todinha, sem faltar quase nenhum pedaço. E aquelas reclamações e todos aqueles problemas impossíveis do tamanho da serra toda hoje cabiam juntos em qualquer um desses buracos da parede.

Dona Ciça entendeu a vida para começar a morrer aos poucos. Via a ladeira da serra e, com base na inclinação, não conseguia explicar o que tinha acontecido com ela: a vida vivida todinha sempre sem explicação. Sempre o fundamento da realidade ladeirenta lhe fora suficiente para tudo o que existia — menos para a existência de tudo — e, agora, além de Seu Ciço ter abandonado a vida e a serra, a própria ladeira da serra abandonava Dona Ciça e não mais explicava o mundo.

Respirou, respirou mais uma vez e a última: então também morreu. Nunca, até agora, alguém havia contado a história deles, que é uma história, apenas, sem outras coroas senão a maior de todas: a de conseguir mostrar o que a linguagem, com suas palavras desesperadas, não poderia dizer, pois é inexplicável até pelas ladeiras de todas as serras, mas que está presente naqueles cujas vidas são como os poemas que apenas por trás das tintas das palavras e das celuloses dos papéis denunciam o verdadeiro amor. De Seu Ciço e Dona Ciça, restou a comprovação de que o amor, assim como tudo o mais que é pensamento do subsolo, não é dizível, mas apenas pode ser mostrado para os que já o sentem e silenciam no sofrimento de viver com a maior sina da nossa linguagem: a de apenas poder dizer o que é verdadeiramente desimportante e medíocre e que, portanto, muita vez nem precisaria ser dito.

26 junho 2006

A Saudade

A Saudade

Por Tassos Lycurgo
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Confesso que, a despeito das minhas inúmeras tentativas, nunca aprendi muito bem para que servem as palavras, mas o contrário disso, ou seja, entender para que desservem, sempre foi a minha especialidade. Entre tantos vocábulos que, a meu sentir, não apresentam qualquer serventia, encontra-se a palavra “fim”. Ora, “fim”, com suas únicas três letrinhas, não é capaz de aniquilar completamente com nada, de extinguir por definitivo nenhuma situação, mantendo ainda na existência o que, nos termos que a palavrinha quer dar a entender, deveria de muito já ter acabado.

Como daria um trabalho enorme defender a tese de que deveríamos oferecer mais noventa e sete letras à palavra “fim”, já que absurdamente só tem três, uma alternativa seria dar mais vigor às que lá já se encontram. Uma idéia nesse sentido seria a de se determinar que elas trouxessem em si, respectivamente, um “f” de fogo, um “i” de incêndio e o “m” de maçarico. Teríamos, assim, uma palavra “fim” incendiária, que aniquilaria e exterminaria tudo que encontrasse... Bem, quase tudo, pois, mesmo depois que ela, embora pequenina, queimasse tudo até o ponto de se pensar que nada mais ali restaria, lá ainda se poderia ver aquele conhecido montinho, o de cinzas.

É fato que depois do incêndio, por pior e mais devastador que seja, ainda estarão lá as cinzas, que, no estranho mundo dos desserviços das palavras, deveriam, isso sim, ser chamadas de “saudade”. É isso: a saudade é um monte de cinzas, que ainda resta depois da ação do fogo, do incêndio e do maçarico. Se pelo menos nascêssemos chamando as cinzas de saudades, saberíamos desde cedo de alguma coisa.

Saber de alguma coisa, nada obstante, é saber de quase nada, principalmente quando o assunto é a saudade. Realmente, a saudade é o mais peculiar dos sentimentos. Note que a angústia, a dor moral e o desespero, que não são saudade, doem como algo que está nos cortando de dentro para fora, nos ferindo, nos mutilando. A dor física e a inveja, por exemplo, doem de fora para dentro. Tanto esse tipo de sentimentos quanto aquele, às suas maneiras, nos ferem, mas a saudade, diferentemente de tudo isso, não golpeia, mas é o próprio corpo ferido e golpeado.

A saudade, tal como um corpo escoriado, esfolado, dói, é fato, mas dói porque nos sentimos incompletos, porque nos sentimos menos do que somos e, diante disso, a sensação é a de que não podemos fazer nada, pois fazer algo contra a saudade seria fazer algo contra nós mesmos, já que ela, de forma diversa do que acontece com os outros sentimentos, não está presente em nós, mas é a nossa própria personificação.

Em outras palavras, pode-se dizer que a saudade é um sentimento de incompletude potencializada pela impotência e, por isso, não é a dor da mutilação, como muitos assim o pensam, mas a dor da constatação de que se está mutilado. De fato, conforme já disse, é o único sentimento que se confunde com aquele que o sente e é exatamente por isso que não há saudade como algo isolado, mas apenas no sujeito que sofre, ou seja, nas lágrimas que ele não chorou, no grito que ele não gritou e no parágrafo que ele nunca escreveu.

03 maio 2006

O Tempo e a Felicidade

O Tempo e a Felicidade

Tassos Lycurgo
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Não adianta chorar, espernear, querer que seja diferente: um, dois, três e pronto, o dia acaba, vem logo outro e, assim, nesta frenética sucessividade que não espera ninguém, fazem-se os menores fatos históricos. Fatos históricos pequenos são os que não serão história, mas esquecimento, pois logo o futuro veste a roupa do presente e está lá, em pé à porta, pronto para entrar e, quando menos esperamos, lá está ele novamente, despido e transmudado em passado. O passado que nada custa e vai logo embora sem nem tocar a campainha, sendo não mais que aquela memória estranha em algum lugar do recheio de nossa cabeça.

Agora e mais outras vezes, alguém tristemente toma o café da manhã; daqui a bem pouco, o momento será o de nem saber direito o que comeu no desjejum e antes mesmo que se lembre, a pergunta já é outra e nunca mais precisará se lembrar disso. É que o passado passou, com toda a força antipleonástica dessa frase. Daqui a mais um pouco, a pessoa vai ler algum dos clássicos e, antes de pegar o livro, os quinze minutos em frente dos programas televisivos da tarde duram quatro horas e já é hora de comer aquele pãozinho quente que seria, se aqui fosse outro, obrigatório no chá das cinco.

Mundo estranho. Tempo estranho. Não entendemos quase nada, de forma que, de tudo, podemos desde sempre adiantar o resumo da ópera: dia novo, velhas perguntas, nenhuma resposta. Fato é que, a cada dia, mais um ciclo se fecha, pelo menos psicologicamente. Daí, vêm logo a alegria de uns e a decepção de outros. Estes, de semblantes mais profundos, sentem o desapontamento porque os seus mundos individuais não mudaram muito naquelas vinte e quatro horas e dois pratos de feijão. Passa o tempo e tudo continua o mesmo: como fora, como era, como é, como será...

Nietzsche, no parágrafo 341 de A Gaia Ciência, pergunta aos homens se eles seriam capazes de querer reviver eternamente tudo o que já passaram. Quase ninguém responde sinceramente que sim. Muitos — e muitos aqui são realmente muitos — detestam a própria vida, de forma que tudo, para eles, se resume a um misto de tédio e sofrimento. Aqui ou acolá, essas pessoas voltam-se para si e engrenam a mesma assertiva: quando acontecer isso — quando eu conseguir isso — quando me derem isso — quando eu ganhar isso — tudo será diferente. Que nada! Ninguém conserta a vida apenas em longo prazo, nem em prestações. Talvez aqui esteja o problema.

A vida é hoje e, para quem enfrenta com seriedade o problema do descontentamento com a sua existência, todo o infinito está neste segundo. Condicionar a vida a eventos futuros, antes de ser um planejamento para se ser feliz, é sintoma da infelicidade. Assim como a pessoa tem febre porque está doente e não fica doente porque tem febre; ninguém se tornará feliz apenas se algo acontecer, mas as coisas repletas de felicidade acontecerão quando se já é feliz.

Parece — e apenas parece (não pode haver resquícios de pretensão neste campo!) — que ser feliz é o primeiro passo e não a conseqüência de atitudes que um ou outro venha a ter. Será que é muito grave dizer isso? Sinceramente, não sei, mas quem sabe? Grave ou não grave, parece verdadeiro e é, antes de tudo, um desafio. Assim, aos que hoje estão infelizes em suas vidas, se é que é permitido sugerir algo, aí vai uma enorme bola de fogo, capaz de destruir montanhas e pedregulhos no caminho: sejam felizes, simplesmente.

26 março 2006

Da Doença do Artista, do Escritor e do Filósofo

Da Doença do Artista, do Escritor e do Filósofo

Tassos Lycurgo
(www.lycurgo.org)

Todo escritor é doente. Todo artista é doente. Todo filósofo é doente. Falo dos verdadeiros, que são pessoas para cujas sobrevivências é necessário mais do que outros precisam para simplesmente existir: aqueles precisam do inútil, do que não tem préstimo ou serventia alguns, como a arte, a literatura e a filosofia.

A arte é inútil. A literatura é inútil. A filosofia é inútil. Se a primeira faz pessoas verem a vida melhor, se a segunda faz pessoas passarem o tempo com alguma nobreza e se a terceira faz homens e mulheres defrontarem-se com problemas de suas existências é que essas atividades estão sendo tomadas não como tais, mas como instrumentos de uma espécie de psicoterapia ocupacional. Arte enquanto arte, literatura enquanto literatura e filosofia enquanto filosofia não têm serventias, senão a de ocupar um vazio, um vácuo, uma lacuna que misteriosamente aparecem no coração de poucas pessoas: os artistas, os escritores e os filósofos.

Se eu não tivesse tanta preguiça de fazer entrevistas e de produzir as suas estatísticas, sairia por aí com uma prancheta perguntando a todo mundo se precisam do inútil para viver. Aposto que encontraria noventa e nove vírgula nove por cento de pessoas que não precisariam do que não tem serventia. Do outro lado, na parcela insignificante da humanidade, estariam os doentes, para os quais é inevitável não se contentar com os limites impostos pela condição da humanidade. Eles precisam existir como humanos sonhadores. Se soubéssemos o que passa na cabeça do sonhador, teríamos até certo constrangimento de caminhar na rua, deixando claro que um jardim mal cuidado e um ar poluído bastam para a nossa sobrevivência.

Para a maioria de nós, basta o pão, a água e alguma distração eventual das coisas reais. Com isso, estamos felizes e vivemos, simplesmente. O artista precisa de mais e, quando consegue, logo vê que aquilo que conseguiu nada lhe trará senão, com muita sorte, alguma fidalguice, mas nunca alguma plenitude. O escritor tem a sua obra, mas não sabe como lidar com o que quis dizer e não disse. O filósofo, como já o escreveram uns, é aquele que não sabe usar a linguagem: fica por aí, criando palavras em línguas mortas (o grego clássico é a preferida) para, depois, debruçar-se sobre o significado que pode ter uma palavra que simplesmente não existe e que ninguém a usa fora do espaço estranho que é criado pelas paredes de uma sala de aula de um curso de filosofia.

Da perspectiva prática, a situação também é doentia, pois escrever é, na realidade, um verdadeiro tédio: é procedimento que muito se estende, quase não acaba nunca e, quando pensamos que está terminado, é hora de jogar tudo fora e começar de novo. Nunca um texto está pronto e nunca estará, mas aquelas horas dedicadas ao que não bem se sabe o que não serão jamais recuperadas. Escrever, nesses termos, é como montar quebra-cabeças ou comer cavaco chinês: apenas uma forma de passar o tempo, de ficar mais velho. Mesmo assim, o escritor, por mais que tente, não consegue deixar de escrever.

Há, ainda, o perigo da esquizofrenia acometer o artista, o escritor e o filósofo. Não raramente, verifica-se em tais pessoas sintomatologia que se manifesta em dissociações entre o que é real e o que é fictício. Muitos deles, inclusive, não são capazes de distinguir essas categorias, colocando de um lado o que pertence à realidade e, do outro, o que é próprio da ficção. Talvez por isso essas pessoas insistam em tentar comunicar algo proveniente de um mundo particular, não acessível. É isso! Eles são autistas que escrevem e produzem arte para comunicar aos da terra as modas interessantes do mundo deles, mas, paradoxalmente, nunca conseguem, pois o limite entre o mundo de fora e o de dentro é mais alabirintado e confuso do que o que possamos imaginar.

De tudo, uma coisa é certa: o artista, o escritor e o filósofo produzem a sua obra para que possam, da perspectiva das suas próprias existências, sentir-se vivos e, em certo grau, livres de suas doenças. É, em resumo, a recorrente tentativa de cura impossível para uma deliberada manifestação de incompletude de si mesmo. É tão triste a incompletude em quem nunca se sentirá pleno. Ninguém, talvez, devesse sentir necessidades que não tivessem uma finalidade prática, pois os que a sentem corroem-se e se consomem. Melhor seria se todos, indistintamente, fôssemos como as plantas, aquelas bem rústicas, que nem de água muito precisam. Vivem e pronto: o resto é extravagância.

18 março 2006

Ócio, Arte e Guinés

Ócio, Arte e Guinés
Tassos Lycurgo
(www.lycurgo.org)


A arte deve a própria existência à capacidade que tem o homem de abstrair. Em nada senão nela, na abstração, é que encontramos a mãe de toda manifestação sublime do ser humano: arte, poesia, filosofia, etc. No caso da primeira, é fato que nenhum outro produto de nossos ancestrais marcou com mais ênfase a abstração do que a sua produção artística, de forma que, certamente, a invenção da abstração se consolidou pela invenção da arte.

Apesar de pensarmos ser bastante plausível que certos hominídeos no paleolítico inferior se tenham debruçado sobre produções artisticamente relevantes (possivelmente por meio de danças e de sons articulados), nada tem sido descoberto que possa comprovar tal hipótese. Apenas no paleolítico superior, graças ao material probatório levantado pelos arqueólogos, é que podemos garantir que a arte tomou conta de parte do tempo disponível dos hominídeos e, talvez, tenha sido ali, no advento da ociosidade, que se deu o caminho para o estabelecimento relativamente definitivo da abstração como um dos elementos centrais e mais importantes do pensamento.

Entender as razões que justificam o fato de nossos ancestrais haverem tido a possibilidade de desfrutar de tempo livre, contudo, necessita de algumas breves considerações. O hominídeo descobre a ociosidade como fruto da crescente complexidade presente em suas relações interpessoais, da descoberta de como manipular o fogo e também do aprimoramento da linguagem. Nossa espécie aumentou gradativamente a sua capacidade de caçar, pois a linguagem lhe possibilitou ataques em grupo mais estruturados contra grandes mamíferos; elaborou, estruturou e conceituou o lugar para onde voltavam depois da atividade laboriosa, que é o que hoje chamamos de lar; e, por fim, viu que seria viável a tarefa de administrar melhor a carne, produto da caça, guardando parte do alimento para consumo posterior. Tudo isso, de forma diversa, porém complementar, contribuiu para o advento do tempo livre, ou seja, da ociosidade e, subseqüentemente, da abstração.

A aprendizagem das técnicas de como manipular do fogo, sem dúvidas, também trouxe enormes mudanças e contribuiu sobremaneira para que tivéssemos o tempo livre necessário para abstrair. Entre tais mudanças, podemos destacar a de que pela primeira vez os hominídeos detiveram maior controle sobre a manutenção da própria segurança, em face do medo que os demais animais nutriam das labaredas. Ademais, o fogo lhe possibilitou algo inimaginável até aquele momento: tornar a noite clara, quebrando, assim, os até então conceitos mais ou menos rígidos de dia e de noite, de forma que, possivelmente, apareceram naquela conjuntura os primeiros notívagos.

Com toda essa otimização da atividade, o ser humano experimentou o tempo livre e pôde naturalmente reelaborar a gama de estímulos que lhe causavam prazer. O ócio, na situação em que ele não mais representava a imanência da morte, seja pelo perigo ou pela fome, trouxe-lhe a capacidade de pensar o inútil, trouxe-lhe a capacidade de, usando-se da linguagem, elaborar os primeiros conceitos abstratos. Ora, não podemos esquecer que nada senão a linguagem é que tornou possível para o homem refletir sobre a própria experiência e, em tal reflexão, é que está o germe da abstração.

Hoje, ao que parece, o homem cada vez mais perde a oportunidade de experimentar a abstração como elemento central do pensamento. Cada vez mais, as pessoas não têm tempo, correm de um lado para outro com o intuito de resolver questões sempre superficiais. Por isso, se não tivermos cuidado, mergulharemos em um retrocesso histórico de tamanha natureza que, no campo da abstração, as gerações do futuro nos compararão aos irmãos que viveram antes do paleolítico superior: apenas pensando o real, o imediato, o palpável, assim como fazem as vacas, as ovelhas e as guinés, que não produzem arte.

15 fevereiro 2006

Elogio à Ignorância Política

Elogio à Ignorância Política

Por Tassos Lycurgo
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Há bons anos, antes dos cinco de idade, eu entendia a política perfeitamente. Depois, com o tempo, fui gradativamente me tornando mais ignorante, a ponto de hoje em dia não entender quase nada de política. Naquela época, quando criança, a política era para mim simples assim: as pessoas viviam em grupos e, como os problemas que se apresentavam eram muitos (limpar a rua, trocar as lâmpadas quebradas dos postes, asfaltar as avenidas, etc.), fazia-se necessário que alguns homens e mulheres se predispusessem a administrar tais funções. Por isso, pensava eu, existiam os cargos de prefeito, governador e presidente e, para ocupá-los, existiam as eleições e a política.

Depois, quando procurei saber por que existiam vereadores, deputados e senadores, a resposta que me foi dada também foi tão simples que eu naquela idade já pude entender. Disseram-me que eles existiam para fazer duas coisas: em primeiro lugar, para crias as leis, que eram importantes para manter a ordem, pois a vida em comunidade seria um caos (senão impossível) se cada um pudesse fazer o que bem entendesse; em segundo lugar, para fiscalizar aquelas pessoas que eram escolhidas para administrar o uso do dinheiro público. Tudo, na minha cabeça, era perfeitamente organizado e lógico, de forma que eu mesmo me admirava quando alguém escolhia para si a missão de desempenhar tarefas tão árduas como essas de lidar com os problemas amplos e complexos que podem oferecer a administração de um estado ou de uma cidade, por exemplo.

Por falar em dinheiro público, lembro-me que até a questão dos impostos me era óbvia. Ora, disseram-me que nada se fazia sem dinheiro e que, por isso, era preciso que cada um contribuísse proporcionalmente ao que ganhava para que, com o montante proveniente da colaboração imposta a todos, os serviços e as obras que se precisasse fazer fossem feitos. Notava também que as mesmas pessoas que pagavam iriam usufruir direta ou indiretamente desses serviços, o que tornava o argumento justificável, mesmo para uma criança. Ademais, também entendi que as pessoas que administravam as cidades, estados e o país precisavam receber por isso, pois de outra forma não poderiam sustentar a própria família e a si próprios: daí, os salários e as verbas extras.

Depois da infância, tudo começou a ficar mais confuso. Hoje, então, é uma incógnita só: leio os jornais e eles dizem que fulano vai se coligar com cicrano e, se isso acontecer, ele se elegerá. Como assim? Aquela idéia que aprendi na infância de que a democracia é um sistema em que o povo escolhe pelo voto livre o melhor candidato (com o melhor programa) para administrar os interesses da coletividade não serve mais? Parece que nunca serviu: era-me apenas coisa de infância.

O pior para mim é que, mesmo que eu tente aceitar cegamente o que o jornal diz, no outro dia, a notícia que vem estampada é não raramente o contrário exato da do dia anterior. É verdade que eu já havia escutado o jargão “a política é dinâmica” na infância, mas ninguém havia de explicado que era sem direção. Hoje, continuo sem entender: para que serve algo dinâmico que não tem direção: melhor seria se fosse estático, pois pelo menos não estaria desesperadamente indo de um lado para outro e vice-versa até chegar o dia da eleição. Parece aquela brincadeira da batata quente, só que no lugar do tubérculo se tem um mandato.

Pior ainda para o meu entendimento é quando o noticiário diz que um parlamentar somente votará a favor de tal projeto se tais emendas forem liberadas ou, em outras situações, se o governo oferecer alguns cargos para o seu partido. Eu, que na infância pensava que parlamentares deveriam votar com base em suas consciências e que cargos públicos deveriam ser ocupados por pessoas com condições técnicas para desempenhar com brio e propriedade as funções que lhe seriam exigidas, fico perdido e atônito, ainda mais porque me parece que para todo mundo isso é normal e ninguém diz nada.

Sei não... Cá estou eu, mais velho, emburrecendo-me politicamente cada vez mais e o mais estranho é que nasce dentro de mim um prazer mais confuso ainda do que a própria política: cada vez que fico mais ignorante politicamente, vem-me uma sensação tranqüila de que, nesse campo, dessaber mais e mais é a coisa certa. Será?

29 janeiro 2006

Pelo Fim das Bajulices

Pelo Fim das Bajulices
Tassos Lycurgo
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Amabilidade e gentileza nunca foram posturas indesejáveis, mas o cortejo com subserviência, a dita bajulação, parece atingir o limite da ridicularia em que pode habitar a atitude de um ser humano. Como tudo na vida, as raízes da bajulação tangenciam elementos econômicos: o desemprego crescente e a dificuldade de sobrevivência, associados a um sistema que não é fortemente meritocrático (no qual a sociedade se organiza com base no mérito das pessoas), fazem com que legiões e legiões busquem no instrumento da subserviência o caminho para construção de um bajulismo que venha, por sorte, à sustentar tanto as necessidades quanto os desregramentos da vida seus espécimes-bajuladores.

É bem verdade que há graus de bajulação e, talvez, tipos diferentes de bajuladores. De um lado, estão os emotivos, os verdadeiramente bajoujos. O bajoujo é aquele cujos elogios de tão melosos e subservientes provocam nos bajulados conscientes quase a sensação física da náusea, ou seja, a ânsia do vômito. Com efeito, a forma mais fácil de identificar este tipo é através da sua ação. Ele chega de forma forçadamente simpática e, mesmo sem intimidade com o candidato a ser bajulado e antes mesmo de dizer qualquer coisa, tenta ajeitar a sua gravata para, ato seguido, elogiá-la. Creio eu que, das duas, uma: ou o bajoujo sente que está no mundo com uma missão especial (endireitar as gravatas da humanidade) ou então este não sabe que apenas os igualmente superficiais gostam de suas bajulações.

De outro lado, encontram-se os bajuladores da ação. Esta manifestação do bajulismo se dá na submissão de certas pessoas a trabalhos totalmente alheios às funções que normalmente deveriam desempenhar. No serviço público, não raramente se vêem casos dessa estirpe: são, respeitadas as exceções, funcionários que fazem a feira dos seus superiores, que levam os seus filhos para se divertir, que se oferecem para pagar a estada dos seus superiores e de toda a família em hotéis de luxo, etc, sem que tenham uma só justificativa — seja familiar, seja pessoal —, que demonstre cabimento a sua atitude.

De todos os tipos e manifestações do bajulismo, algo os une verdadeiramente: a bajulação é figura infiel à pessoa do bajulado, pois se liga único e exclusivamente ao seu cargo, mandato ou posição em uma dada organização. Assim, é impressionante o que acontece quando os bajulados se aposentam ou ficam sem mandato. As suas mesas, que outrora eram superlotadas nas festas e comemorações, passam a apresentar muitas e muitas cadeiras vazias. Não raramente, aqueles que eram os bajuladores mais aplicados, ao se encontrarem com os agora aposentados, fazem que nem os vêem, em uma manifestação clara de que a pessoa, neste ambiente, nada mais era do que um acessório para o cargo em que estava investido. Há, inclusive, um ditado segundo o qual a soleira da porta da casa do antes bajulado, agora aposentado, cria grama, pois ninguém mais passa por lá, senão o cão que cria ou o ladrão, em momento de descuido.

No que diz respeito ao bajulado, também há dois tipos deles. De um lado, encontram-se os que gostam da bajulação. Essas pessoas mergulham em um sistema psicológico, que me é difícil de em poucas palavras explicar, a ponto de pensar que os elogios subservientes e cheios de segundas intenções que lhe fazem são manifestações verdadeiras do coração do bajoujo. Talvez estejamos falando aqui de pessoas carentes emocionalmente que preferem o elogio falso á ausência deste.

De outro lado, encontram-se os bajulados conscientes, que, por isso, detestam a bajulação. Para essas pessoas, o bajulismo oferece um grande problema: o de identificar quais são as verdadeiras amizades. Aqui, realmente, algo terrível acontece: os bajulados conscientes deixam mesmo de experimentar o prazer de eventuais amizades verdadeiras porque já se encontram tão enojados com a maioria esmagadora dos bajoujos, que preferem a solidão a uma eventual decepção no futuro.

No que tange à tarefa de se saber quais são os amigos verdadeiros, arrisco-me a um palpite: em regra, os verdadeiros amigos são aqueles que se afastam dos que estão exercendo mandatos ou que foram há pouco tempo investidos em cargos de projeção. Esses amigos são os que sempre estarão prontos para quando se precisem deles, mas nunca para os ambientes, tão comuns hoje em dia, em que reina a superficialidade das palavras elogiosas sem o ingrediente da sinceridade.

18 janeiro 2006

A Liberdade dos Fortes

A Liberdade dos Fortes

Por Tassos lycurgo
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Homens e mulheres há de vários tipos. Nietzsche, entre tantos, os dividem em dois blocos: os fortes e os fracos. O forte, homem de espírito livre, é mais valioso do que o fraco, meramente inteligente. Verdadeiramente livre, o forte vive, simplesmente, e é feliz. Os fracos — meramente inteligentes, senão por vezes inteligentíssimos — desenvolvem a sua vida em um pano de fundo traçado pela mais temível das estratégias: a de se afirmarem na vida em função dos outros. A inteligência, para essas pessoas, é como uma ferramenta para se portarem no mundo, como um mecanismo para lhes informar quem eles devem ser em dado momento, dependendo do contexto, das pessoas presentes, dos objetivos que almejam atingir, etc. Encontram espaço, aqui, a dissimulação, o cálculo, o fingimento e a hipocrisia.

De maneira diferente, para o forte — o homem livre —, a inteligência lhe serve de refinamento. Usar a inteligência, para ele, causa sensação semelhante àquela que as crianças demonstram no transcorrer das brincadeiras infantis: um misto de prazer e inocência. Para o homem livre, a inteligência não é um meio, mas um fim: serve-lhe para, principalmente, promover-lhe a visão contemplativa do mundo e de Deus. O forte não precisa da inteligência, pois vive mesmo sem ela. A afirmação de sua vida, diferentemente do que ocorre com os fracos, é um processo que nasce em si, em sua sinceridade e em sua honestidade diante de si e do mundo. A vida, para o forte, é fonte de alegria, de alegria honesta.

O fraco, por sua vez, está a todo tempo tentando postar-se no mundo para conseguir algo. Como não tem personalidade nem identidade próprias, a vida lhe é um fardo, uma tristeza, um caminho espinhoso e, por isso, ele não é livre. O fraco é aquele para quem, como dissera Schopenhauer, a semana se divide em cinco dias de sofrimento e dois de tédio. Resta-lhes, assim, imitar os outros, fazer conluios, armar estratégias, tudo para sentir uma sensação falsa e transitória de alegria que não se compara à alegria do forte, que perdura.

É verdade que, também para o forte, a vida apresenta todas as dificuldades, intempéries e vicissitudes que todos conhecem. Mas, para ele, a possibilidade de lutar contra tais dificuldades já é causa de prazer e alegria. O forte vai à guerra para lutar contra os problemas e sente prazer na própria luta. Ele ama a guerra contra os problemas e, ao final de cada batalha, passa a amar o próprio adversário, esquece tudo e continua a viver como se nada tivesse acontecido. Nesse sentido, o forte chega mesmo a escolher o caminho mais difícil, pois sabe que o enfrentamento da luta é o que o tornará mais vivo; é o que fará com que ele sinta o sangue correr em suas veias, que sinta a beleza extravagante que existe nas folhas, nas pedras, nos trovões, no mar, isto é, na própria existência.

Para o fraco, qualquer problema, por menor que seja, apresenta-se como a mais selvagem das feras. Parece mesmo um muro intransponível, um obstáculo que jamais superará. O fraco, então, disfarça-se, mente, camufla-se e não enfrenta o problema. Prefere despistá-lo ou mesmo ceder até o momento em que possa unir-se com outros fracos (eis o conluio!) para, em conjunto, lutar traiçoeiramente em uma batalha que deveria ser só sua. O desfecho da peleja, nesses termos, será momentâneo e o problema certamente voltará, pois já exerce poder sobre o coração do próprio fraco.

O forte é o verdadeiro poeta e o verdadeiro artista, que são pouquíssimos — se é que ainda existe algum! —, talvez todos desconhecidos, silenciosos e alheios a tudo o que acontece no âmbito mais destacado da rotina humana: o da futilidade, que jaz na superficialidade do que é hoje de um jeito e amanhã de outro, ou seja, de tudo o que é transitório. Eis por que as coisas que perduram, definitivamente, não encontram o menor espaço nas preocupações da maioria da humanidade. Resta a eles, os fortes, viverem a sua vida alegremente, contemplando o valor estético que reside na tragédia da coexistência, em uma só época, de tristes homens com vidas mais tristes ainda.