16 dezembro 2005

A Rede e a Ignorância

A rede e a ignorância
Tassos Lycurgo

A memória nos sempre é algo estranho. É espantoso como, a partir de um fato, somos reportados a outro, longínquo, que nem sabíamos mais que existia em nossas concatenações. De certa feita, esperando o almoço, resolvi deitar-me por algum tempo em uma rede armada na varanda. Bastaram-me não mais que duas ou três balançadas e, subitamente, veio-me ao recheio do crânio um grande fluxo de reminiscências. Vi-me novamente com seis ou sete anos, na fazenda Galeão, onde, até certa idade, sempre passei as férias da infância.

Esclareço desde já que nunca fui dado às dormidas em rede, objeto sempre muito alheio e estranho para quem cresce na retidão literal dos colchões ortopédicos. Talvez por isso a novidade me levou aonde não estava: ao passado. Estranho é que, quando pensamos o passado da infância, ele quase que é mais do que o presente, pois além da sensação de realidade, traz também uma nostalgia especial, difícil de explicar, senão por uma imagem: é aquela saudade que nos faz sorrir sem perceber, até que, quando percebemos, surpreendemo-nos pois estávamos rindo, sem saber.

Quanto às minhas lembranças, digo-lhes que, lá no Galeão, na casa-grande da referida fazenda, onde agrupavam-se os quase sem-número de primos e amigos para brincarem durante todo o período de férias, a rede era opção obrigatória para as crianças. Deitar em rede, naquela situação, era privilégio que nos dava a novidade, o inesperado, a imaginação. A rede era como um helicóptero ou uma nave dessas que se atribuem aos extraterrenos. A rede também era uma fortaleza contra as possíveis almas, que, segundo a narrativa dos caçadores do alto sertão, perambulavam durante a noite na escuridão da casa-grande.

Lembro-me que a rede, para as crianças na fazenda, também emoldurava o teto durante a noite e, dependendo da chuva que caísse do lado de fora, as sensações da visão do teto altíssimo da casa-grande (com suas telhas pesadas, escuras e misteriosas), somavam-se aos sons da água caindo em enxurradas e dos trovões, ao clarão dos raios e, assim, juntando tudo isso sobre as nossas cabeças e corpos, proporcionava-nos uma experiência única: a de que há muito a conhecer, verdadeiramente.

Creio que na vida adulta, embora a situação não tenha mudado muito, as pessoas nunca voltam a sentir o fascínio estético que provoca a ignorância. As pessoas nunca voltam a sentir o prazer de entender que o mundo é tão misterioso e complexo que, na escala do conhecimento possível, o que sabemos na fase adulta não é mais do que sabemos na infância. O homem adulto, ensimesmado, reduz o mundo às armações de seus óculos e determina que tudo o que estiver fora delas perca o interesse ou a importância. Na casa-grande, a rede não limitava o nosso pensamento, mas, paradoxalmente, nos protegia para que pudéssemos pensar mais.

De repente, escuto uma voz doce: era a minha esposa me chamando para o almoço. Levantei-me e, quando havia dado uns dois ou três passos, resolvi por um ou outro motivo — que me faz preguiça de analisar — olhar para a rede do alpendre que ficara atrás. Senti em relação a mim mesmo uma forte decepção: por mais que tentasse, não conseguia ver nada senão um pano esquisito e indeciso pendurado por armadores em duas paredes perpendiculares. Fui almoçar e nunca mais pensei nisso.

05 dezembro 2005

Pelo Fim do Carnatal

O carnatal é uma das coisas que mais me surpreendem. Por mais que reúna todos os esforços, é-me ainda difícil entender como seres humanos, voluntariamente, reúnem-se e, sob o ritmo de uma música simplória e sob os efeitos das mais variadas drogas — álcool e outras mais — , vestem-se todos com o mesmo tipo de roupa para, no espaço limitado por uma corda barata, fazerem um percurso que, ao final, não levou a lugar algum.

Somos um povo estranho: já ouvi um sem-número de vezes defenderem o carnatal com base no argumento de que traz divisas para o estado. Se fosse este o único argumento a ser considerado, justificar-se-ia em algum grau o incentivo ao tráfico de drogas, de armas e de mulheres, que, assim como o carnatal, são atividades altamente lucrativas, mas condenáveis com veemência por serem ilegais e imorais. O carnatal, da mesma forma, é flagrante de inconstitucionalidade.

Um sem-número de pessoas, que realmente não gostam do carnatal, pois são afetadas por ele, são obrigadas a conviver com a selvageria todo ano. São pessoas idosas, recém-nascidos e bebês dos quais lhes são furtados o sagrado direito à tranqüilidade e ao justo sono, os quais, para muitos desses e tantos outros, são o que há de mais valioso. Realmente, não há possibilidade de agredir a individualidade das pessoas para que um grupo fantasiado fique desnecessariamente pulando segundo as ordens daquele que está no trio elétrico. Isso só é aceitável em um povo selvagem, em que o poder público não avoca para si o dever de zelar pela saúde dos que dela mais necessitam e tudo o mais é postergado em favor do prazer carnavalesco dos que se enquadram nos abadas.

O argumento de que são apenas três dias, da mesma forma, não deve prosperar. Bastava mesmo que fosse apenas um par de horas, para que várias pessoas não pudessem dormir, não pudessem ir para a sua casa ou sair dela quando bem entendessem, não pudessem desenvolver as suas atividades empresariais livremente, não pudessem, enfim, fazer o que a constituição lhe garante em tempo de paz: viver a vida livremente.

Somos mesmo silvícolas em roupas da cidade. No carnatal, quando passamos pelas ruas e avenidas na proximidade da festa, se desavisados, pensaríamos até que estamos em um estado fora-da-lei, em que lojas e empreendimentos são obrigados a colocar tábuas em frente de suas vitrines com medo de um saque, de um vandalismo, ou mesmo de um tiro. O que dizer da luta constante de vários setores da sociedade organizada que procuram livrar os jovens das drogas e, diante de tais festas, muita vez saem com o saldo negativo. Com efeito, muitos jovens sofrem fisicamente em conseqüência da festa patrocinada pelo poder público: uns são vítimas de tiros ou facadas, outros sofrem as conseqüências de práticas impensadas mas incentivadas pelo contexto carnavalesco, principalmente as decorrentes do sexo sem prevenção e do consumo exagerado de substâncias tóxicas, como é o caso do álcool, da maconha e da cocaína, comuns em tal festa.
É por isso que o Brasil é uma piada: sem graça. Os estrangeiros de países desenvolvidos vêm ao carnatal assim como nós vamos ao zoológico, com a diferença de que aqui os bichos são humanos e podem, para eles, despertar novos interesses que zebras e leões apenas muito raramente despertam nos homens. Aos que pensam diferentemente, lembrem-se de que nos países nórdicos, na Alemanha, EUA, etc., muitas festas acontecem, mas é impensável o patrocínio pelo poder público de uma festa que venha a agredir tão frontalmente o direito de idosos e crianças como essa de nome, por sinal, bastante infeliz: carnatal, que tem em “carna” uma alusão aos prazeres carnais e, em “natal”, no caso de nossa cidade, uma referência ao nascimento de Cristo, que é o oposto de tudo isso.