12 fevereiro 2008

Vícios e Virtudes: uma introdução

Vícios e Virtudes: uma introdução

Tassos Lycurgo
http://www.lycurgo.org/

Falar sobre os vícios e as virtudes não é tarefa simples. Posso mesmo esticar, dobrar, espremer o pensamento e, mesmo assim, a dificuldade ainda me remanesce, razão por que, em certo sentido, tenho mesmo a vontade de declarar a desistência quando os assuntos são assim tão extremados. Algum consolo existe, contudo, quando verifico que não estou solitário nesta tarefa, pois muitos – para dizer a triste verdade – também confessam a mesma apertura e, quando tentam superá-la, chegam às mais diversas conclusões.

Para alguns, como Sêneca e Horácio, por exemplo, virtudes somavam palavras bonitas, mas desprovidas de significado. “Triste virtude, és apenas uma palavra” seria o que, de acordo com Floro (em sua Epítome), por último saiu da boca de Brutus, ao morrer. O senso comum, petrificado na opinião do povo em dado momento, parece ser mais benevolente com o conceito de virtude, de sorte que muitos a tomam como condição de uma espécie de nobreza da alma. Veja-se que, a esse respeito, há um antigo ditado em português que afirma que “é melhor ser bom do que de boa raça”, o qual, adaptando-se às eventuais peculiaridades histórico-culturais das demais línguas modernas, encontra nelas algumas sinonímias, tais como a alemã “Tugend ist der beste Adel”, a espanhola “Noble se puede llamar el que por naturaleza es inclinado a virtue” ou a inglesa “Nobility is the one only virtue”, entre outras.

Dos vícios, muitos os consideram condições essenciais à constituição humana, de maneira que eles quase que formam o homem como as letras formam as palavras. Mas, em algum sentido, entender que somos viciosos pode paradoxalmente se apresentar como postura virtuosa, pois, como Petrônio insiste em nos lembrar, “homines sumus non dei” – “somos homens, não Deuses” – e, sendo assim, imaginar-nos sem os vícios seria senão presunçoso, por demasiado infantil. Realmente, somos um conjunto de falhas, de defeitos, de vícios, que, contrapostos às nossas virtudes – ou dito, talvez, de melhor maneira, em conjunto com elas –, formam esta mistura, por vezes impressionante, que costumamos chamar de espécime humano, de sorte que enquanto estes houver, vícios haverá, como, por sinal, bem o disse Tácito, em sua Historiae. Entender este conjunto é desafio árduo, mormente quando envolve conteúdos eticamente apreciáveis.

Embora o termo “virtude”, que encontra respaldo etimológico no latino “virtus” e no grego “arete”, não tenha nascido com forte conteúdo ético, logo o adquiriu e, hoje, quase se confunde com o adjetivo “bom”, assim como vício se confunde com “mau”. O conteúdo ético, embora quase sempre presente, sofre variações a depender do pensador. Para Agostinho, a bondade da virtude estava no amor; Hobbes o via no desejo de paz; Malebranche o encontrava no amor pela ordem; Montesquieu, de forma relativamente semelhante, no amor pela lei; Kant, na postura diante dos deveres firmemente estabelecidos. Enfim, cada cabeça, um mundo, um conceito de virtude e, conseqüentemente, de vício. A análise, todavia, não precisa ficar tão aberta, se consideramos que, das várias questões que o tema envolve, tais como as que inquirem sobre a origem deles, a maneira como se desenvolvem e a forma como afetam os seres humanos, há uma em particular que desperta grande interesse para pensamento artístico: a que pergunta como os vícios e as virtudes podem ser apropriadamente representados, personificados, pelas artes visuais. É, em outras palavras, a transmutação na questão analisada da predominância ética para a estética, de maior interesse das artes.

Giotto di Bondone (1267-1337), considerados um dos primeiros pilares da renascença italiana, enfrentou como ninguém o problema de representar visualmente os vícios e as virtudes quando, em 1305 e 1306, aproximadamente, pintou trinta e oito afrescos na Capela Arena, em Pádua. Saiba-se que afresco é o nome da obra que se obtém por meio de uma técnica de pintura que se dá na própria parede quando o revestimento desta ainda está úmido, de forma que a tinta possa naquele momento ali penetrar e, conseqüentemente, perpetuar-se por vários anos.

As principais séries de afrescos lá presentes são as que descrevem a vida de Cristo, a vida de Maria e o Juízo Final. Há, contudo, um tema que é pintado na parte mais baixa das paredes que, a meu sentir, é o mais interessante de todos, que é, exatamente, a exposição de figuras representando as sete virtudes divinas e os sete vícios profanos. Glenn Erickson, em seu “Giotto’s Virtues”, que traduzi para publicação em português sob o título “As virtudes de Giotto”, tratou do assunto. Em outras crônicas, tratarei especificamente da personificação de cada virtude com o respectivo vício, demonstrando como a prudência e a tolice; a firmeza e a inconstância; a temperança e a ira; a justiça e a injustiça; a fé e a idolatria (ou descrença); a misericórdia e a inveja; e, por fim, a esperança e a desesperança, puderam ser visualmente representados por figuras humanas em situações específicas. Espero que estes textos vindouros sejam em algum sentido virtuosos, pois vícios certamente os terão. Veremos.

06 fevereiro 2008

Política e Cultura

Política e Cultura

por Tassos Lycurgo - www.lycurgo.org

Os campos da cultura tornaram-se enfadonhos. Nos encontros de temas afeitos a essa temática seria bom se víssemos a todo tempo os posicionamentos originais, únicos, desafiadores; ou seja, aqueles que subvertem o pensamento e fazem repensar conceitos e perspectivas. Em regra, não é o que ocorre. Aliás, para sermos honestos, podemos dizer que muitos dos encontros culturais são, quase sempre, repetições sem graça, sem originalidade e tão insossos que, comparada a eles, água mineral mataria de hipertensão. O coquetel de abertura desses eventos ou a cerimônia de entrega de prêmios, por exemplo, são quase sempre sofríveis: bajulações sem-fim, protocolos, idem.

É bem verdade que a vantagem do protocolo, como dizia o Azambuja, é que em sua ausência, duas coisas aconteceriam: ninguém administraria as vaidades e ninguém sentaria. Como em pé somente a turma que não tem outras opções consegue ficar durante todo o tempo, podemos conciliar as duas noções: o protocolo é aterrorizante, embora essencial para que sentemos; mas quanto à bajulação, devo dizer, não há saídas: é mesmo o fim do mundo, de forma que, nos eventos culturais, a situação é tão crítica que há casos em que muitos sentem – embora não o admitam publicamente – que o melhor momento é o do intervalo.

Para piorar a situação, a política cultural, por vezes, é absolutamente desvirtuada. Alguns políticos se aproveitam da cultura para atacar adversários. Ora, isso faz com que grande parte do que se produz hoje nesses eventos não passe, na realidade, de uma manifestação primitiva e traiçoeira de um confronto eleitoreiro de egos em um ambiente no qual os digladiadores são significantemente piores do que os guerreiros de antigamente, pois a frouxidão e semblantes pálidos que aqueles apresentam não os permitem enveredar logo para o duelo, para confronto direto, no qual pesam muitos quês de selvageria e incivilidade — é verdade —, mas, pelo menos, os oponentes saberiam para que lá se encontravam e as armas seriam conhecidas. A batalha aberta – mesmo a batalha intelectual aberta – é sempre honesta, seja porque, exceto a da honestidade, não há regras a descumprir, seja porque, quando as há, não remanesce tempo para descumpri-las; o subterfúgio é que é a arma detestável e, infelizmente, é a mais usada.

A aparência de intelectualidade que se tentam a todo custo imprimir alguns personagens dos eventos culturais, nesses termos, é em grande parte uma farsa, pois camufla desejos pequenos e vaidades idem, quando deveria enaltecer valores incompatíveis com tudo o que é mesquinho e pequeno. Ora, o uso da cultura – universal, mesmo quando regional – com intuitos eleitoreiros ou pessoais faz aparecer aos montes homens que, em vez de enfrentarem idéias e pessoas de forma honesta e limpa, vão pelos lados, como as baratas. Mentem e fazem do seu agir o instrumento da dissimulação. Confabulam por trás, armam estratégias eleitoreiras às escuras, reúnem-se entre si, tudo para impor ao adversário ausente alguma dose de veneno, uma desvantagem, um golpe baixo, como se o pensamento cultural devesse se prestar a isso.

Sabemos que as baratas, assim como esses homens, não atacam diretamente: agem pelos cantos, pelas costas, contaminando tudo o que podem. O ardil, no lugar da honestidade, é a arma predileta delas, quando não a única. Sorrateiramente, aproximam-se e esperam o momento propício para agir e, quando nunca se espera, quando não se pode guerrear, quando se está com a luz apagada, fazem o seu trabalho sujo, para fugir à inicial batida ou ao sinal da primeira lâmpada a ser acesa. Os políticos desse tipo são as baratas e, a despeito disso, conseguem os almejados votos. É que muito deles se lançam por certos caminhos com o intuito de, conquistando a superficialidade, mostrar uma falsa profundidade para alguns eleitores, seja porque os que eles arregimentam para vê-los são míopes, seja porque as idéias que professam são turvas, impenetráveis e, por isso, sempre oferecem aqui ou acolá uns quês de esoterismo, os quais, no entendimento de muitos, toma a roupagem esquisita da sabedoria.

Guimarães Rosa já fizera em algum lugar a comparação entre homens e rios. No caso desses políticos, eles seriam rios de águas tão embaciadas que pouco se veria a dez centímetros de profundidade, inda que nunca se soubesse se há efetivamente algum hiato entre a superfície e o fundo do riacho. Os políticos que são riachos rasos, portanto, são mais perigosos do que os apenas de águas turvas, pois impõem a todos os que mergulham em suas propostas o iminente perigo de, no pulo, quebrar o próprio pescoço; e, por fim, o pior é que, se olharmos bem, veremos muitos eleitores de pescoço quebrado.