26 março 2006

Da Doença do Artista, do Escritor e do Filósofo

Da Doença do Artista, do Escritor e do Filósofo

Tassos Lycurgo
(www.lycurgo.org)

Todo escritor é doente. Todo artista é doente. Todo filósofo é doente. Falo dos verdadeiros, que são pessoas para cujas sobrevivências é necessário mais do que outros precisam para simplesmente existir: aqueles precisam do inútil, do que não tem préstimo ou serventia alguns, como a arte, a literatura e a filosofia.

A arte é inútil. A literatura é inútil. A filosofia é inútil. Se a primeira faz pessoas verem a vida melhor, se a segunda faz pessoas passarem o tempo com alguma nobreza e se a terceira faz homens e mulheres defrontarem-se com problemas de suas existências é que essas atividades estão sendo tomadas não como tais, mas como instrumentos de uma espécie de psicoterapia ocupacional. Arte enquanto arte, literatura enquanto literatura e filosofia enquanto filosofia não têm serventias, senão a de ocupar um vazio, um vácuo, uma lacuna que misteriosamente aparecem no coração de poucas pessoas: os artistas, os escritores e os filósofos.

Se eu não tivesse tanta preguiça de fazer entrevistas e de produzir as suas estatísticas, sairia por aí com uma prancheta perguntando a todo mundo se precisam do inútil para viver. Aposto que encontraria noventa e nove vírgula nove por cento de pessoas que não precisariam do que não tem serventia. Do outro lado, na parcela insignificante da humanidade, estariam os doentes, para os quais é inevitável não se contentar com os limites impostos pela condição da humanidade. Eles precisam existir como humanos sonhadores. Se soubéssemos o que passa na cabeça do sonhador, teríamos até certo constrangimento de caminhar na rua, deixando claro que um jardim mal cuidado e um ar poluído bastam para a nossa sobrevivência.

Para a maioria de nós, basta o pão, a água e alguma distração eventual das coisas reais. Com isso, estamos felizes e vivemos, simplesmente. O artista precisa de mais e, quando consegue, logo vê que aquilo que conseguiu nada lhe trará senão, com muita sorte, alguma fidalguice, mas nunca alguma plenitude. O escritor tem a sua obra, mas não sabe como lidar com o que quis dizer e não disse. O filósofo, como já o escreveram uns, é aquele que não sabe usar a linguagem: fica por aí, criando palavras em línguas mortas (o grego clássico é a preferida) para, depois, debruçar-se sobre o significado que pode ter uma palavra que simplesmente não existe e que ninguém a usa fora do espaço estranho que é criado pelas paredes de uma sala de aula de um curso de filosofia.

Da perspectiva prática, a situação também é doentia, pois escrever é, na realidade, um verdadeiro tédio: é procedimento que muito se estende, quase não acaba nunca e, quando pensamos que está terminado, é hora de jogar tudo fora e começar de novo. Nunca um texto está pronto e nunca estará, mas aquelas horas dedicadas ao que não bem se sabe o que não serão jamais recuperadas. Escrever, nesses termos, é como montar quebra-cabeças ou comer cavaco chinês: apenas uma forma de passar o tempo, de ficar mais velho. Mesmo assim, o escritor, por mais que tente, não consegue deixar de escrever.

Há, ainda, o perigo da esquizofrenia acometer o artista, o escritor e o filósofo. Não raramente, verifica-se em tais pessoas sintomatologia que se manifesta em dissociações entre o que é real e o que é fictício. Muitos deles, inclusive, não são capazes de distinguir essas categorias, colocando de um lado o que pertence à realidade e, do outro, o que é próprio da ficção. Talvez por isso essas pessoas insistam em tentar comunicar algo proveniente de um mundo particular, não acessível. É isso! Eles são autistas que escrevem e produzem arte para comunicar aos da terra as modas interessantes do mundo deles, mas, paradoxalmente, nunca conseguem, pois o limite entre o mundo de fora e o de dentro é mais alabirintado e confuso do que o que possamos imaginar.

De tudo, uma coisa é certa: o artista, o escritor e o filósofo produzem a sua obra para que possam, da perspectiva das suas próprias existências, sentir-se vivos e, em certo grau, livres de suas doenças. É, em resumo, a recorrente tentativa de cura impossível para uma deliberada manifestação de incompletude de si mesmo. É tão triste a incompletude em quem nunca se sentirá pleno. Ninguém, talvez, devesse sentir necessidades que não tivessem uma finalidade prática, pois os que a sentem corroem-se e se consomem. Melhor seria se todos, indistintamente, fôssemos como as plantas, aquelas bem rústicas, que nem de água muito precisam. Vivem e pronto: o resto é extravagância.

18 março 2006

Ócio, Arte e Guinés

Ócio, Arte e Guinés
Tassos Lycurgo
(www.lycurgo.org)


A arte deve a própria existência à capacidade que tem o homem de abstrair. Em nada senão nela, na abstração, é que encontramos a mãe de toda manifestação sublime do ser humano: arte, poesia, filosofia, etc. No caso da primeira, é fato que nenhum outro produto de nossos ancestrais marcou com mais ênfase a abstração do que a sua produção artística, de forma que, certamente, a invenção da abstração se consolidou pela invenção da arte.

Apesar de pensarmos ser bastante plausível que certos hominídeos no paleolítico inferior se tenham debruçado sobre produções artisticamente relevantes (possivelmente por meio de danças e de sons articulados), nada tem sido descoberto que possa comprovar tal hipótese. Apenas no paleolítico superior, graças ao material probatório levantado pelos arqueólogos, é que podemos garantir que a arte tomou conta de parte do tempo disponível dos hominídeos e, talvez, tenha sido ali, no advento da ociosidade, que se deu o caminho para o estabelecimento relativamente definitivo da abstração como um dos elementos centrais e mais importantes do pensamento.

Entender as razões que justificam o fato de nossos ancestrais haverem tido a possibilidade de desfrutar de tempo livre, contudo, necessita de algumas breves considerações. O hominídeo descobre a ociosidade como fruto da crescente complexidade presente em suas relações interpessoais, da descoberta de como manipular o fogo e também do aprimoramento da linguagem. Nossa espécie aumentou gradativamente a sua capacidade de caçar, pois a linguagem lhe possibilitou ataques em grupo mais estruturados contra grandes mamíferos; elaborou, estruturou e conceituou o lugar para onde voltavam depois da atividade laboriosa, que é o que hoje chamamos de lar; e, por fim, viu que seria viável a tarefa de administrar melhor a carne, produto da caça, guardando parte do alimento para consumo posterior. Tudo isso, de forma diversa, porém complementar, contribuiu para o advento do tempo livre, ou seja, da ociosidade e, subseqüentemente, da abstração.

A aprendizagem das técnicas de como manipular do fogo, sem dúvidas, também trouxe enormes mudanças e contribuiu sobremaneira para que tivéssemos o tempo livre necessário para abstrair. Entre tais mudanças, podemos destacar a de que pela primeira vez os hominídeos detiveram maior controle sobre a manutenção da própria segurança, em face do medo que os demais animais nutriam das labaredas. Ademais, o fogo lhe possibilitou algo inimaginável até aquele momento: tornar a noite clara, quebrando, assim, os até então conceitos mais ou menos rígidos de dia e de noite, de forma que, possivelmente, apareceram naquela conjuntura os primeiros notívagos.

Com toda essa otimização da atividade, o ser humano experimentou o tempo livre e pôde naturalmente reelaborar a gama de estímulos que lhe causavam prazer. O ócio, na situação em que ele não mais representava a imanência da morte, seja pelo perigo ou pela fome, trouxe-lhe a capacidade de pensar o inútil, trouxe-lhe a capacidade de, usando-se da linguagem, elaborar os primeiros conceitos abstratos. Ora, não podemos esquecer que nada senão a linguagem é que tornou possível para o homem refletir sobre a própria experiência e, em tal reflexão, é que está o germe da abstração.

Hoje, ao que parece, o homem cada vez mais perde a oportunidade de experimentar a abstração como elemento central do pensamento. Cada vez mais, as pessoas não têm tempo, correm de um lado para outro com o intuito de resolver questões sempre superficiais. Por isso, se não tivermos cuidado, mergulharemos em um retrocesso histórico de tamanha natureza que, no campo da abstração, as gerações do futuro nos compararão aos irmãos que viveram antes do paleolítico superior: apenas pensando o real, o imediato, o palpável, assim como fazem as vacas, as ovelhas e as guinés, que não produzem arte.